Por Daniel Giovanaz / Rede Brasil Atual
Brasil de Fato – Ao menos quatro Tribunais Regionais do Trabalho (TRT) no Brasil já deram ganho de causa a motoristas de aplicativo que alegaram vínculo de emprego com a multinacional estadunidense Uber.
Os trabalhadores alegam que são obrigados a se submeter às condições impostas pelas plataformas digitais, sob pena de serem punidos ou excluídos pelo aplicativo e perderem sua fonte de renda. Hoje, mais de 1 milhão de brasileiros atuam nessas condições e assumem sozinhos as despesas de combustível, seguro e manutenção do carro, por exemplo.
No início de novembro, o Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) ajuizou uma ação pedindo que a Uber registre os motoristas em carteira imediatamente, alegando “fraude trabalhista”.
Quando os casos chegam à instância superior, no entanto, a empresa tem levado a melhor. Até o momento, turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já decidiram cinco vezes pela inexistência de vínculo de emprego.
O TST tem oito turmas, cada uma composta de três ministros.
A Uber se refere aos motoristas como “parceiros”, e não como empregados, trabalhadores ou colaboradores.
“Eles são profissionais independentes que contratam a tecnologia de intermediação digital oferecida pela empresa por meio do aplicativo. Os motoristas escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento”, disse a empresa em nota enviada ao Brasil de Fato, em reportagem recente sobre o tema.
“Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens, não existe chefe para supervisionar o serviço, não há obrigação de exclusividade na contratação da empresa e não existe determinação de cumprimento de jornada mínima”, alega a multinacional.
:: TRT do Rio reconhece vínculo empregatício na Uber: subordinação ‘sofisticada’ ::
Segundo dados levantados pelo MPT-SP junto à empresa 99, cerca de 99% dos motoristas trabalham por aplicativo quatro ou mais dias por semana. Os procuradores tentaram obter dados de outras três empresas, incluindo a Uber, mas a informação foi negada.
O próximo capítulo dessa disputa no TST está marcado para 15 de dezembro, às 9h. A 3ª Turma julgará nessa data mais um pedido de reconhecimento de vínculo entre motorista e aplicativo, negado em 1ª e 2ª instâncias.
Será a segunda vez que o Tribunal analisará o mérito da questão. A primeira foi em fevereiro, na 5ª Turma, que concluiu pela inexistência de vínculo de emprego.
O julgamento já foi iniciado, e o relator, ministro Maurício Delgado, reconheceu o vínculo. Segundo o voto dele, as empresas “exercem poder diretivo” sobre os motoristas, estabelecendo uma relação de subordinação. A análise foi suspensa em 2020 após pedidos de vista.
O que diz a CLT?
O caso mais recente, julgado pela 5ª Turma do TST, é emblemático para se entender as disputas sobre a existência de vínculo de emprego com a Uber.
O ex-motorista Mauricio de Souza Dinucci, do Rio de Janeiro (RJ), teve seu recurso rejeitado em outubro e ainda precisará pagar uma multa à Uber – estipulada em 2% sobre o valor da causa.
Dinucci afirma ter sido desligado da empresa após um incidente em que acionou a Polícia Militar (PM) para retirar do carro um passageiro sem dinheiro que se recusava a desembarcar e passou a agir agressivamente.
No processo, o advogado do motorista afirma que a Uber não é uma empresa de tecnologia, mas de transporte privado, e que a relação de Dinucci com o aplicativo cumpria todos os requisitos de um vínculo de emprego.
O reconhecimento desse vínculo depende de cinco pressupostos: serviço prestado por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade.
No caso de Dinucci, a 5ª Turma do TST não reconheceu dois deles: a não eventualidade e a subordinação. O primeiro diz respeito à flexibilidade das jornadas e à possibilidade de passar vários dias seguidos sem trabalhar, sem que isso acarrete punição ou exclusão. O segundo se refere à autonomia do motorista, e é ainda mais polêmico.
Desde 2011, o artigo 6º da CLT afirma que não há distinção “entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”
O mesmo artigo acrescentou que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”
O Brasil de Fato conversou com o advogado e desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT3), José Eduardo Resende Chaves Júnior, para entender por que ainda há divergência na interpretação da lei.
“É uma questão relativamente nova, e o julgamento costuma ser feito com o conhecimento que o juiz tem do painel do aplicativo como usuário, que é muito diferente do painel do motorista”, analisa o especialista.
“A maioria dos juízes ainda aplica a configuração do vínculo empregatício nos termos do artigo 3° da CLT, que foi pensado para um tipo de gestão do trabalho humano fordista, focado na subordinação e na disciplina”, acrescenta Chaves Júnior, citando a mudança ocorrida há dez anos.
O artigo 3º considera empregado apenas quem prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
“O artigo 6º da CLT estabeleceu a equiparação jurídica da ‘subordinação’ ao ‘controle’, que é mais flexível, dispensa a disciplina horária ou até mesmo a assiduidade”, ressalta o desembargador aposentado.
“A partir de então, temos duas modalidades de configuração do vínculo: para as relações de trabalho tradicional fordista temos o artigo 3° da CLT, da disciplina e da subordinação. Para o trabalho em aplicativo, chamado uberista, temos o parágrafo único do artigo 6°.”
Na interpretação de Jorge Pinheiro Castelo, presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e livre docente da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho realizado por motoristas de aplicativo pode ser lido como intermitente, conforme a reforma trabalhista de 2017.
“Foi uma das únicas coisas boas daquela reforma, e talvez eles nem tenham observado isso”, afirmou Castelo ao Brasil de Fato, em referência ao pressuposto da não eventualidade ou não habitualidade.
O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece desde então que o trabalho por demanda – válido para qualquer tipo de atividade do empregado ou do empregador, exceto aeronauta – pode se configurar como relação de emprego intermitente.
“A reforma estabelece uma nova forma de habitualidade, que é descontínua. É o que permite ao motorista desligar o aplicativo ou recusar algum serviço, sem que isso desconfigure o vínculo”, explicou o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da OAB-SP.
O desafio da jurisprudência
O termo jurisprudência se refere ao conjunto de decisões e interpretações de leis realizadas por tribunais superiores, adaptando as normas às situações ocorridas. Em resumo, são entendimentos já consolidados que servem para balizar decisões sobre processos semelhantes que venham a ser julgados no futuro.
No caso da Uber, as vitórias pontuais em 1ª e 2ª instâncias não foram suficientes para formar no Brasil uma jurisprudência favorável aos motoristas.
Juristas apontam que a multinacional vem oferecendo acordos a motoristas que estão prestes a ganhar ações na Justiça, de modo a impedir a consolidação de um entendimento que reconheça o vínculo empregatício.
Segundo a 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), se trata de uma “estratégia de manipulação da jurisprudência”.
O termo foi usado em uma decisão publicada em 20 de abril, que inspirou outros três tribunais regionais. Em votação unânime, os juízes deram ganho de causa a um motorista de Campinas (SP) e apontaram “a incompatibilidade entre a observância do princípio da cooperação e o abuso do direito processual”.
Um dia antes da sessão, foi protocolada às 18h15min uma petição que solicitava a retirada do processo de pauta e a homologação de acordo no valor de R$ 35 mil. O tribunal negou essa solicitação.
“A estratégia da reclamada de celebrar acordo às vésperas da sessão de julgamento confere-lhe vantagem desproporcional porque assentada em contundente fraude trabalhista extremamente lucrativa, que envolve uma multidão de trabalhadores e é propositadamente camuflada pela aparente uniformidade jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em todos os processos”, diz a decisão do TRT15.
A Uber recorreu daquela decisão e negou todas as acusações.
Essa estratégia já havia sido detalhada no início do ano, no artigo “Litigância manipulativa da jurisprudência e plataformas digitais de transporte: levantando o véu do procedimento conciliatório estratégico”. As autoras são Adriana Goulart de Sena Orsini e Ana Carolina Reis Paes Leme, desembargadora e analista judiciário do TRT em Minas Gerais, respectivamente.
No texto, elas fazem um raio-x dos processos que chegaram até aquele tribunal e lembram de outros casos em que a Uber firmou acordo com o motorista na véspera da sessão de julgamento.
Decisões semelhantes à do TRT15 foram tomadas este ano no TRT1, no Rio de Janeiro, no TRT11, em Amazonas e Roraima, e no TRT3, em Minas Gerais. Nos quatro episódios, os juízes afirmaram que a Uber tenta manipular a jurisprudência no país.
Em todos os casos, a Uber recorreu.
Embora nenhuma turma do TST tenha reconhecido até hoje o vínculo de emprego de um motorista de aplicativo, o desembargador aposentado José Eduardo Resende Chaves Júnior afirma que o entendimento ainda não está consolidado.
“Está ainda distante de haver uma maioria. Na Justiça dos EUA, levou nove anos até a decisão da Suprema Corte da Califórnia reconhecer o vínculo. No Brasil, a Uber chegou em 2014, então creio que a situação vai se estabilizar no TST por volta de 2023 ou 2024”, analisa.
O especialista vê com preocupação a cobrança de multa ao motorista do Rio de Janeiro, no mês passado, que teve seu recurso negado na 5ª Turma do TST.
“Sem dúvida, trata-se do fenômeno chamado ‘jurisprudência defensiva’, ou seja, um tipo de ativismo judicial em que o Judiciário tenta dissuadir o cidadão a discutir judicialmente o seu direito”, interpreta o advogado.
“O tempo é o senhor da razão. Tão logo tenha-se visão clara de que a maioria do trabalho humano será ‘subordinado’ ou ‘controlado’, a tendência do TST é abrir-se a esse tipo de relação, sob pena inclusive de perder importância política sobre grande parcela do trabalho humano no Brasil”, finaliza.