Por CNTE
Neste ano, a Lei 12.711 de 2012 – mais conhecida com Lei de Cotas -, será reavaliada. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a presença de negros nas universidades dobrou de 9%, em 2011, para 18%, em 2019. Os números são referentes a estudantes que frequentam o ensino superior, entre 18 e 24 anos.
Segundo Wanderson Pinheiro, advogado do Movimento Negro Unificado, é inegável que o combate ao racismo seja um compromisso de toda a sociedade, mas não se pode negar o papel central do Estado na elaboração de ações afirmativas para o enfrentamento dos desafios. Exemplo disso é o comparativo de rendas mensais em nossa estrutura social: enquanto brancos ganham, em média, R$ 2.796 mensais, a renda de negros não passa de R$ 1.608. “Com dados tão discrepantes, manter a política de cotas é fundamental para promover uma sociedade mais igualitária”, afirma o advogado.
O modelo constitucional brasileiro propõe um sistema de discriminação positiva, com o intuito de alcançar a igualdade substancial, que é tratar os desiguais na medida de suas desigualdades. Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a constitucionalidade da política de cotas, que foi capitaneada pela Universidade de Brasília (UnB). Segundo Pinheiro, nesse julgamento, o STF buscou reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais no Brasil.
“Assim, surgiu a Lei de Cotas, com a premissa de permitir a superação das desigualdades decorrentes de situações históricas. Todavia, esse marco legal prevê uma revisão única, que ocorrerá na próxima sessão legislativa, em 2022. Fato é que não serão 10 anos de vigência da lei de cotas que irão corrigir 348 anos de tráfico e tortura de pessoas negras relegadas à própria sorte após a abolição”, explicou Wanderson. Para ele, é de suma importância trazer luz aos projetos legislativos que têm sido farol na construção da perspectiva material do princípio constitucional da isonomia.
De acordo com a deputada estadual pelo PSOL-RJ, Dani Monteiro, a universidade é um sonho para a maioria dos jovens negros no Brasil. Com as cotas, o espaço privilegiado de excelência e saber tornou-se acessível. “Foi assim comigo. Na universidade, eu me formei militante e ativista, porque mesmo com o acesso facilitado, é preciso lutar pela permanência, já que a maioria de nós ainda tem de trabalhar enquanto estuda”, pontua.
Para a deputada, a estabilidade do aluno negro e pobre no ensino superior segue uma tarefa material e simbolicamente árdua. “Por isso mesmo, a luta pela melhoria do ensino superior público precisa ser uma bandeira de todos nós”, assegura. “Ainda temos uma batalha pela frente, por isso é importante que o assunto esteja sempre em nossas mentes, que as crianças pretas e pobres já sejam habituadas a pensar que, sim, elas têm direito e têm um lugar legítimo a ocupar. Como a educação e a boa formação, a universidade também é para nós”, conclui Dani Monteiro.
Também cotista pela Universidade Católica de Minas Gerais, a vereadora em Contagem pelo PT, Moara Saboia, lembra que a cota faz parte da história de sua família: os irmãos são estudantes cotistas da Universidade Federal de Minas Gerais e os pais se formaram depois dos 60 anos por intermédio, também, das cotas.
Ela diz acreditar que o sistema de cotas é uma grande possibilidade, a abertura de uma porta para os sonhos. “Você não vai escolher o que vai ser para sempre a partir da cor da sua pele. As cotas nos permitiram sonhar com sermos aquilo que exatamente quiséssemos: eu faço engenharia, meus irmãos também, mas a gente poderia ser médico, psicólogo, cientista social, a gente poderia ser qualquer coisa”, garante a vereadora.
De acordo com a filósofa e educadora Sueli Carneiro, as cotas permitiram que a universidade faça parte do sonho das famílias negras. Para ela, o fim da discriminação passa efetivamente pela política de cotas e pela consequente igualdade econômica. Confira suas ideias na entrevista exclusiva da Revista Mátria reproduzida abaixo:
Em 2010, a senhora foi convidada para uma audiência no STF sobre política de acesso ao ensino superior. Defendeu e ressaltou a importância das cotas e da igualdade econômica para o fim da discriminação. De lá para cá, como a senhora enxerga o percurso das cotas no Brasil?
Com as cotas raciais, promovemos a democratização do acesso ao nível universitário e tornamos os campi universitários num espetáculo inédito de diversidade racial e étnica; elas vêm permitindo ainda a ampliação do horizonte epistemológico em diferentes áreas do conhecimento com as novas perspectivas que os cotistas agregam aos estudos acadêmicos. Como efeito positivo adicional, é o fato de as cotas para negros nas universidades terem colocado a universidade no imaginário das famílias negras. Fazer uma faculdade não era uma ambição da minha geração; é ambição das atuais. E, por fim, as cotas raciais retiraram os racistas do “armário” e os obrigaram a saír em defesa dos privilégios que sempre desfrutaram no acesso às vagas das universidades públicas no Brasil.
Como a senhora vê a relação entre escravidão, o racismo e a atual onda de autoritarismo que vivenciamos no país?
Não se passa impunemente por quase 400 anos de escravidão, sucedida por uma abolição inconclusa, que não previu nenhuma estratégia de inclusão dos ex-escravizados à sociedade brasileira, mas que ao contrário foram considerados estoques populacionais indesejáveis no novo país que seria forjado pela República. Por isso, sob a influência do “racismo cientifico”, ideologia corrente à época, essas populações deveriam ser substituídas por imigrantes europeus, para criar um novo povo e embranquecer o país. As ideias de superioridade e inferioridade racial, propagadas pelo “racismo científico” sobre a diversidade humana, impactaram e permanecem impactando a sociedade brasileira, por mais falaciosas que sejam, como já foi amplamente demonstrado pelas ciências contemporâneas.
Um dos argumentos que sustentam a negação da aplicação das cotas é que ela não focaria na questão estrutural da desigualdade, que seria a pobreza. Como a senhora enxerga esse argumento?
Considero esse um argumento que está a serviço da postergação no enfrentamento do problema. Defende-se a luta para garantir uma escola pública universal, gratuita e de boa qualidade, como se isso não tenha sido uma prioridade na luta dos negros desde a abolição; basta assinalar que era a principal reivindicação da Frente Negra Brasileira na década de 1930. Os que se aferram a esse argumento entendem, a meu ver, que enquanto a escola pública de qualidade não vem, os negros devem esperar, de preferência “bem quietinhos”, pois a reivindicação de cotas raciais não seria suficientemente transformadora segundo alguns dos seus críticos.
Portanto, a defesa da escola pública de qualidade, velha reivindicação das classes populares, entra na retórica das classes média e alta como remédio para impedir que os excluídos do direito ao conhecimento de qualidade conspurquem com o seu ‘‘baixo nível’’ o reduto de reprodução das elites em que se constituem as universidades públicas por elas privatizadas.
Por outro lado, em diferentes estudos, sobretudo os realizados pelo IPEA, se demonstrou que o problema da pobreza no Brasil não resulta de falta de recursos, mas sim de um alto grau de desigualdade. A segunda constatação é que as políticas universalistas não têm sido capazes de reduzir as desigualdades. A terceira é que o combate à desigualdade tem impacto superior sobre a redução da pobreza do que via crescimento econômico. É mais rápido e mais barato.
Segundo a socióloga Márcia Lima, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base na Pnad-2007, realizou projeções para a diminuição da desigualdade racial e apontou que seria necessário manter o mesmo ritmo de queda durante, ao menos, quarenta anos para que se consolidasse uma sociedade racialmente mais igualitária. Mas os opositores das cotas passam, intencionalmente, ao largo dessas evidências.